domingo, 17 de setembro de 2017

BRUNA LOMBARDI

TOCAIA
.
Que o amor nos possuísse
no meio de um descampado
num jogo que não tem regra
nem pecado

Numa tortura lenta
com ritual absoluto
que o amor nos possuísse
doce e absoluto

Que houvesse fuga e corrida
e grito agudo na boca
que a dança fosse selvagem
e louca

Com maldade instintiva
guerra de unha e dente
todo impulso desmedido
corpo quente

Depois na hora do cerco
firmes os cinco sentidos
vem o animal e se envolve
atraído

Pra que dure mais o jogo
ora foge ora se entrega
se joga se abre provoca
depois nega

Cúmplice do adversário
de manso se defendendo
vai pouco a pouco à cilada
cedendo

Corpo todo se espalhando
no meio do descampado
na luta quem não domina
é dominado

E aí segura a corrente
manseia cavalo bravo
na luta quem não é senhor
é escravo

Chegada a hora da posse
o momento mais violento
novilha presa arqueia
sem movimento

No meio do seu combate
foi afinal possuída
e geme pra essa morte
melhor que a vida

Se enrosca sentido o gosto
de ter sido capturada
sabendo que foi vencedora
e derrotada

E depois de tudo resta
um cansaço ainda melhor
sorriso dentro do corpo
fora o suor

Que o amor nos possuísse
com sensação de perigo
no meio do descampado
com dois inimigos

sábado, 4 de agosto de 2012

Berrante De Ouro

Zé Fortuna & Pitangueira

Nesta casinha junto ao estradão
Faz muito tempo eu parei aqui
Vem, minha velha, vamos recordar
Quantas boiadas eu já conduzi
Fui berranteiro e ao me ver passar
Você surgia me acenando a mão
Até que um dia eu aqui fiquei
Preso no laço de seu coração
Vê, ali está
O meu berrante no mourão do ipê
Vou cuidar melhor
Porque foi ele que me deu você
Me lembro o dia que eu aqui parei
Daquela viagem não cheguei ao fim
Foi a boiada e com você fiquei
E os peões dizendo adeus pra mim
Vem minha velha, veja o estradão
E o berrante que uniu nós dois
Nuvens de pó que para trás deixei
Recordações do tempo que se foi
Vê, ali está
O meu berrante no mourão do ipê
Vou cuidar melhor
Porque foi ele que me deu você
Daquele tempo que bem longe vai
O meu berrante repicando além
Ecos de choro vindos do sertão
Ao recordar fico a chorar também
Não é de ouro meu berrante não
Mas para mim ele tem mais valor
Porque foi ele que deu você
E foi você que me deu tanto amor
Vê, ali está
O meu berrante no mourão do ipê
Vou cuidar melhor
Porque foi ele que me deu você

domingo, 6 de maio de 2012

C A I M

"...trago meu rosto marcado e eles me conhecerão..."

Estou vivo
               e é muita sorte!
Minha face está marcada
               por um sinal indelével.
Estou vivo
                e é muita sorte
ter na face este sinal!

Trago na face o sinal
ostentado por Caim...
Haverá um deus do Mal
vivendo dentro de mim?

Ou será outra Animal
inferior e menos mal
que me faz agir assim?

Estou vivo e minha sorte
é ostentar este sinal
de superioridade ou de morte,
mas para ter o meu porte
tem que ser LIVRE afinal!!!

A quinhentos metros
Cecília Meireles¹
“A quinhentos metros, os vossos belos olhos desaparecem; e essa claridade do vosso rosto; e a fascinação da vossa palavra. É uma pena (eu também acho que é uma pena!), mas, a quinhentos metros, tudo se torna muito reduzido: sois uma pequena figura sem pormenores; vossas amáveis singularidades fundem-se numa sombra neutra e vulgar. Ao longe, caminhais como qualquer pessoa – e até como certas aves: é o que resta de vós: esse ritmo, na imensa estrada que também se vai projetando, estreita e indistinta, sobre o horizonte.
Bem sei que tendes muitas inquietações: há um mês de maio na vossa memória, e um campo em flor, e um arroio que cantava numas pedrinhas, e depois muitas, muitas cidades grandiosas e indiferentes, e teatros acesos, ramos de flores, ceias, risos, vozes, adereços de turquesa, – bem sei, bem sei. Bem sei que tudo isso ficou a mais de quinhentos metros, e ainda de longe continuais a sofrer. Mas, para quem vos olha a uma distância de quinhentos metros, essas dimensões que levais convosco deixam de existir. As canções que aprendestes e a dor que sabeis, nada se avista daqui. Sois uma sombra muito pequenina, prestes a perder mesmo o ritmo do passo, a parecer parada como o próprio chão. Podereis ir para um lado ou para o outro: daqui a pouco nem saberemos para onde fostes: e as vossas decisões estarão fora do nosso alcance, como vós estareis fora da nossa vista.
É bem triste tudo isso, porque nós vos amamos, e gostaríamos de responder, se por acaso nos chamásseis: mas, a quinhentos metros, é bem difícil ouvirmos a vossa voz. Mandamos pelo ar nossos bons pensamentos: mas, que acontece aos pensamentos, mesmo aos melhores, desde que partem, desde que se desprendem de nós? Onde vão pousar os nossos bons pensamentos? E as pessoas a quem os dirigimos serão exatamente aquelas que os encontram?
Tenho muita pena de tudo isso: mas a pena vai ficando também menor, cada vez menor, à medida que avançais para longe: o sofrimento acompanha seu dono; nós apenas o vemos, e algumas vezes o compreendemos, sem, no entanto, o podermos tomar para nós, desfazê-lo ou dar-lhe outra direção. E ele também vai ficando pequenino, diminuindo, com a distância, para nós que não o carregamos, que apenas ouvimos dizer que existe. É como, nos mapas, o desenho de um rio que jamais encontramos: é certo que passa por ali, mas não sabemos nada de suas histórias, reflexos e ecos.
A quinhentos metros, na verdade, há muita ausência, vamos acabando muito depressa. Pensai que, geralmente, neste mundo, há sempre cerca de quinhentos metros de uma pessoa para outra! Somos só desaparecimento. E apenas quando conseguimos ficar, também, a quinhentos metros de nós mesmos, encontramos algum sossego. Porque, então, é a vez dos nossos tormentos mudarem de proporções e aspecto. De serem vistos só de longe, sem pormenores, sem voz, sem ritmo: nem mês de maio, nem flores, nem arroio. Talvez a memória serenada. Talvez nem a memória…- É assim em quinhentos metros!”

quinta-feira, 29 de março de 2012

Ignoto Deo

Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!

José Régio

sexta-feira, 2 de março de 2012

Poema negro
A Santos Neto

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino. . .
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha idéia
Aumenta. Como as chagas da morféa
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-se os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos,
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.
Augusto dos Anjos

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Aguapé

(Belchior / Raimundo Fagner ( epigrafe ) Castro Alves)


Capineiro de meu pai
não me cortes meus cabelos.
Minha mãe me penteou;
minha madrasta me enterrou,
pelo figo da figueira
... que o passarim beslicou.

"Caminheiro que passas pela estrada,
seguindo pelo rumo do sertão
quando vires a cruz abandonada,
deixa-a em paz dormir na solidão".

"Que vale o ramo do alecrim cheiroso
que lhe atiras nos seios ao passar?
Vais espantar o bando buliçoso
das borboletas, que, lá vão pousar".

Esta casa não tem lá fora;
a casa não tem lá dentro
três cadeiras de madeiras,
uma sala, a mesa ao centro.

Rio aberto, barco solto,
pau-d'arco florindo à porta,
sob o qual, ainda há pouco,
eu enterrei a filha morta.

sob o qual, ainda há pouco,

eu enterrei a filha morta.

Aqui os mortos são bons,

pois não atrapalham em nada;

pois não comem o pão dos vivos,
nem ocupam lugar na estrada...

"pois não comem o pão dos vivos,

nem ocupam lugar na estrada.

Nada,
Nada, nada.
Nada, nada, nada.
Aqui não acontece nada, não.
Nada.
Nada, nada, nada.
Absolutamente nada....
E o aguapé, lá na lagoa,
sobre a água nada
e deixa a borda da canoa
perfumada.
É a chaminé à toa
de uma fábrica montada
sob a água que fabrica
este ar puro da alvorada.